Um dos fundamentos que norteiam o Humanismo Secular é a Justiça Social e uma das profissões que mais a sintetizam é o Serviço Social. Vi diversas situações onde a autointitulada “moralidade da fé” se sobrepõe sobre o respeito e direitos do indivíduo.
Sempre fiquei curioso em saber qual seria a percepção do Serviço Social em relação a esta temática. Para tanto conversei com o Assistente Social Ricardo Bortoli que por suas experiências em situações de fragilidade social seria a pessoa certa para responder às nossas questões.
Segue também uma tentativa de por uma luz sobre um tema que cerceia nosso cotidiano e que, porém, nem sempre nos damos conta da sua complexidade.
(Fabiano Uesler)
Ricardo Bortoli é Mestre no Programa de Pós-graduação em Sociologia na Universidade Federal do Paraná. Possui graduação em Serviço Social pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) (2000) e especialização pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Foi Assistente Social na Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina, onde trabalhou por aproximadamente dois anos e meio com adolescentes autores de ato infracional em cumprimento de medida sócio educativa de internação. Em 2003 assumiu a Coordenação de Programa de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e Intrafamiliar na Prefeitura Municipal de Blumenau, neste mesmo ano foi efetivado como Assistente Social neste programa, onde trabalha até a presente data. Em fevereiro de 2013 concluiu um mestrado em Sociologia da UFPR, onde desenvolveu um projeto de pesquisa que teve como tema, o processo de construção de si na narrativa de homens autores de agressões nos contextos da violência de gênero. Desde abril de 2013 leciona no Curso de Serviço Social da Universidade Regional de Blumenau, onde desempenha a função de Coordenação do Curso.
O que é e como atua o Serviço Social no Brasil?
O Serviço Social é uma profissão reconhecida pela divisão sócio técnica do trabalho, está sob os desafios e obstáculos cotidianos que muitas vezes vão em direção contraria ao projeto ético político da profissão. Ou ainda podemos dizer que a falta de crítica, o imediatismo, a fragmentação, o senso comum, o espontaneísmo são atitudes típicas da vida cotidiana repetidas automaticamente em face da burocracia institucional.
No campo da intervenção são muitos os desafios atuais. O maior deles é tornar esse projeto um guia efetivo para o exercício profissional e consolidá-lo por meio de sua implementação efetiva, ainda que na contramão da maré neoliberal. Os Serviço Social criou força a partir da política de saúde na década de 80 e atualmente através da política de assistência social e do SUAS vem conquistando cada vez mais espaço através do equipamento de CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e de CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). É necessário, porém que façamos uma reflexão:
O serviço social não deve corresponder a lógica do estado, na manutenção da desigualdade de renda e das outras expressões da questão social. O serviço social possui um norte bem claro que é possibilitar a construção de autonomia, inclusão, e acesso à cidadania.
No entanto esse profissional, assim como outros profissionais atuam em serviços que possuem critérios que são excludentes, que não respeitam as diversidades e as individualidades dos sujeitos. Como Assistentes Sociais trabalhamos remando contra a corrente em busca da garantia do “direito de ser gente”, da mulher oprimida que ainda hoje recebe cerca de 30% menos que o homem no mercado de trabalho, nas mesmas funções conforme IBGE, da pessoa com deficiência que é invisível aos equipamentos e políticas públicas, e tantas outras expressões da questão social.
Você já se deparou com situações em que alguma entidade ou grupo religioso tenha afetado seu trabalho no serviço social?
Antes de discorrer sobre esse assunto se faz necessário observar que as primeiras escolas de Serviço Social no Brasil surgiram na década de 30 fundamentadas na igreja católica com o objetivo de “ajudar” as pessoas. A partir da década de 60 o Serviço Social passa a questionar esta intervenção, em 1979 o Serviço Social aprova seu novo Currículo e passa por um momento de reconceituação, rompendo com essa abordagem funcionalista e positivista e com esta visão assistencialista originada da igreja católica. A partir da década de 80, mais especificamente em 1986, através da reforma sanitária e da aprovação da constituição em 1988 se abriu novas possibilidades para a implementação de políticas públicas do Serviço Social.
Considerando que a religião possui uma forte influência na construção dos valores de vida dos sujeitos, através do processo de intervenção no campo da violência de gênero nos deparamos no cotidiano profissional com diversas situações em que as mulheres alegam não separar devido ao "mito" do casamento ser consagrado por deus, assim como os homens "autores de violência contra a mulher", justificam pretenderem se separar, uma vez que "o que Deus uniu o homem não separa".
Neste sentido é importante reconhecer que estas crenças foram construídas e edificadas ao longo da história de vida destas pessoas. Ainda podemos afirmar que muitos dos padres, bispos, pastores e líderes religiosos quando usam seu discurso reforçam os estereótipos de gênero, tais como: "o homem é a cabeça, e a mulher é o pescoço". Isso possui uma enorme influência na construção da subjetividade do indivíduo que convive numa relação violenta, o papel dos profissionais é possibilitar que haja uma reflexão.
Há influência religiosa nas políticas públicas de tal maneira que possa interferir na prática do Serviço Social?
As políticas públicas não devem ter influência religiosa, uma vez que o "Estado" é laico. No entanto a políticas públicas, gestores, técnicos, conselhos, profissionais que possuem intervenção direta ou indireta possuem princípios religiosos que podem por vezes interferir na implementação das políticas públicas, assim como aos critérios de acesso, podendo dessa forma influenciar na pratica nas políticas e serviços de Assistência Social entre outros.
Historicamente o Brasil tem várias religiões e práticas religiosas, de que maneira estas práticas afetam o acesso à população carente?
As civilizações possuem crenças, costumes e modos de se comportar que pode divergir entre ambas, considerando que estas práticas podem em alguns aspectos libertar em outros aprisionar.
As instituições religiosas podem ter práticas ainda com base assistencialista, que de certa forma mantém a miséria econômica. Como exemplo, podemos observar instituições religiosas com acumulação de capital e seus fiéis passando por necessidades.
Dessa forma a desigualdade social é mantida e consolidada por estas instituições de forma contraditória.
Uma parcela destas instituições religiosas pode interferir de alguma maneira no trabalho de informação em relação à sexualidade ou aos diferentes núcleos familiares, já que, normalmente aceitam somente os núcleos tradicionais?
De certa forma isso acaba se tornando um dos grandes entraves, pois a questão religiosa interfere em diversos aspectos.
Esta construção de valores como "O que Deus uniu o homem não separa", é responsável por muitas mortes, se não físicas simbólicas de mulheres que se submetem a manter um casamento mesmo que sob violência do companheiro, na perspectiva de corresponder à expectativa da família e a sua própria subjetividade. Outros contextos, com relação aos homossexuais, a discriminação e a exclusão acabam por trazer sequelas na vida desses sujeitos, assim como aos seus familiares e pessoas com as quais estabelecem relações.
Cabe reconhecer que a sexualidade é uma construção social, conforme afirma a feminista francesa Simone de Beauvoir, "não se nasce mulher, torna-se mulher", assim não se nasce homem torna-se homem. Judith Butler e Joan Scott também trazem aspectos fundamentais neste sentido, que por hora possibilita repensar o sujeito dentro de sua individualidade nos diversos contextos da vida, inclusive o da sexualidade. Ou seja, isso é uma afronta a família nuclear burguesa tão defendida pela igreja.
De que maneira as entidades religiosas podem ajudar a combater o aumento da desigualdade social no Brasil ou em outro cenário contribuir com esta desigualdade?
Buscando estratégias de redistribuição de renda.
A pluralidade sexual e consequentemente as várias composições de núcleos familiares podem sofrer interferência de grupos religiosos?
Podem, através de repressão e outros meios anteriormente já descritos.
Qual a importância da manutenção da Laicidade do Estado para o Serviço Social?
É fundamental que o Estado seja laico, afinal as pessoas expressam diversidade e singularidade e devem ser respeitadas em seu contexto. Isso está diretamente ligado com o nosso compromisso ético, político e ideológico profissional.
Qual a correlação, se é que existe entre religião e violência doméstica?
A violência doméstica é algo complexo e atravessa diversos contextos, pois está instituída na construção dos valores que norteiam as pessoas. Pensando nos homens autores de violência contra suas companheiras, podemos afirmar que estas masculinidades agressoras fazem parte de nossa construção. Na obra "Poder Simbólico", Pierre Bourdieu (2007) aponta para os muitos ritos institucionais que também são exercidos nas escolas, no exército, na arte, na religião, ou na língua. Estes funcionam como sistemas estruturantes que compreendem instrumentos de conhecimento e de comunicação. São exercidos porque estão estruturados. Outro elemento que se faz necessário destacar é que estes homens possuem masculinidades diversas, entre elas masculinidades violentas; no entanto, não estão sozinhos. Outros homens, que não são instituídos com masculinidades violentas, também representam práticas de violência que podem estar associadas à forma como se comportam e fazem-lhes se sentir pertencentes ao mundo masculino ou, ainda, que somente assim serão reconhecidos como homens de verdade. Assim, Bourdieu (2010) sinaliza as estruturas de dominação que os homens utilizam através da violência física e da violência simbólica, a fim de manifestar sua honra e virilidade e de serem reconhecidos enquanto verdadeiros homens.
As religiões possuem praticas extremamente machistas, que oprimem a mulher numa condição de submissão, é só perceber que os líderes em sua grande maioria são homens, sem falar na forma como transmitem estes valores que acabam por reforçar os estereótipos de desigualdade de gênero.
A manutenção do ECA pode ser afetado pelo discurso religioso?
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi um avanço, assim como a lei Maria da Penha, o Estatuto do idoso, precisamos ir além! Pessoas com Deficiência são gente!!!!
E estão invisíveis aos olhos das políticas públicas, das famílias e também das instituições religiosas, que por hora não possuem nenhum movimento visível. As instituições religiosas possuem muita influencia na vida das pessoas, caso apoiem, por exemplo, a redução da maioridade penal, vão contra o que determina o estatuto. Uma vez que o sistema presidiário está completamente fragilizado.
(Artigo Publicado na 4ª Edição (Março/Abril de 2014) da Revista Ateísta http://www.revistaateista.com/edicoes/revista04/ )
Créditos das Imagens:
1ª Imagem: Ricardo Bortoli
Demais Imagens: Reprodução
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1ª Imagem: Ricardo Bortoli
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