Juntamente com 1984,
de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Laranja Mecânica, de Anthony
Burgess é a obra literária que fecha a Tríade
Distópica, são romances ambientados num futuro não muito distante das
épocas em que foram escritos e que criticam a alienação, o totalitarismo e as
formas de controle social. Se na parte 1 desta série vimos a obra distópica
mais impactante (clique aqui para ler o artigo sobre o livro “1984”), agora nos
focaremos naquela que é a mais famosa, fama em grande parte advinda da
excelente adaptação cinematográfica do mestre Stanley Kubrick.
Apesar deste artigo fazer alguns paralelos e utilizar imagens da película, não é seu objetivo analisar o filme, mas o romance originalmente lançado em 1962. |
Anthony
Burgess não era um escritor de sucesso e nos idos de 1959 foi diagnosticado
com um tumor cerebral, a partir deste ponto, com o objetivo de deixar algum
dinheiro para sua esposa, ele escreveu como se não houvesse amanhã
(literalmente) e em menos de um ano tinha seis obras completas, sendo que uma
delas viria a se tornar um clássico, mesmo que tenha sido largamente conhecida
somente dez anos depois, após o lançamento do filme de Kubrick. Felizmente,
Burgess pode desfrutar do sucesso e dinheiro, pois o diagnóstico se mostrou
errado e o tumor nem sequer existia.
O que seria mais bizarro que uma laranja mecânica? Segundo
Burgess, trata-se de uma expressão londrina que significa estranheza, uma
extravagância tão grande que subverte a natureza, afinal, o que seria tão
estranho quanto uma fruta recheada por engrenagens? Estranheza que o leitor
experiência logo no início do primeiro dos vinte e um capítulos, todos eles
narrados em primeira pessoa pelo protagonista Alex, que emprega certas
expressões em seu vocabulário, que até então eram desconhecidas por todos,
trata-se do vocabulário Nadsat, que
Burgess criou misturando inglês, russo e gírias londrinas. A ideia era que
houvesse uma linguagem utilizada pelas gangues juvenis retratadas na obra, mas
ele não poderia utilizar as gírias da época, pois além de datar o romance,
entrariam em contradição com a época futura em que a história é narrada.
As edições brasileiras trazem um glossário da
linguagem nadsat no final do livro, mas há uma nota informando que caso o
leitor queira experimentar a estranheza que os leitores britânicos tiveram (e
ainda tem, pois segundo uma pesquisa que fiz não há glossário mesmo nas atuais
edições britânicas), recomenda-se que o leitor mergulhe diretamente na
narrativa e descubra o mundo de Alex da maneira que o autor concebeu, algo mais
ou menos assim: “Então ele agarrou com força a devotchka, que ainda estava
krikikrikando num compasso quatro por quatro muito horrorshow, prendendo os
rukas dela por trás e grudis muito horrorshow exibindo seus glazis rozas”.
Os vinte e um capítulos narrados em primeira pessoa
pelo anti-herói Alex, que no filme de Kubrick se chama Alex DeLarge (numa
referência a Alexandre, O Grande), são divididos em três partes distintas. A
primeira delas narra a saga de ultraviolência de Alex e seus druguis, enquanto
bebem moloko com vellocet e itiam pela cidade em busca de veshkas horrorshow até
que Alex termina por ubivatar uma babushka e acaba indo parar na cadeia. A
segunda parte mostra a rotina de Alex como um pleni até que aceita participar
do Tratamento Ludovico, uma espécie
de terapia por aversão em que Alex é drogado para sentir náuseas enquanto é
obrigado a videar filmes de ultraviolência, bitvas e outras barbáries. O
tratamento termina com Alex incapaz de cometer qualquer ato violento, mas não
por opção do individuo e sim por uma imposição física, ou seja, Alex perde o
livre-arbítrio. A terceira e última parte narra a reintegração de Alex à
sociedade, quando seus pais não o querem mais em sua domi, ele é hostilizado
por seus antigos druguis e utilizado como meio de propaganda tanto pelo governo
como pela oposição.
O capítulo vinte
e um do livro, que narra uma espécie de redenção do protagonista, foi
originalmente omitido das edições americanas e da adaptação cinematográfica de
Kubrick, deixando um final mais aberto e sombrio, quando Alex devaneia numa
cena orgiástica e se declara curado do Tratamento Ludovico. Pessoalmente
prefiro a versão completa, mas a visão dada por Kubrick em seu filme também é
muito horrorshow.
Glossário das expressões nadsat utilizadas neste artigo:
Babushka - Velha
Bitva – Luta, Batalha
Devotchka - Garota
Domi - Casa
Drugui - Amigo
Glazi – Olho, Mamilo
Grudis - Seios
Horrorshow – Ótimo, Excelente, Legal
Krikikrikando - Gritando
Moloko - Leite
Pleni - Prisioneiro
Ruka – Mão ou Braço
Ubivatar - Matar
Ultraviolência - Estupro
Vellocet – um tipo de Droga
Veshka - Coisa
Videar – Assistir, Observar
Clique aqui e veja o glossário de expressões nadsat
completo da edição brasileira.