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segunda-feira, 19 de maio de 2014

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Literatura - A Tríade Distópica – Parte 2: “Laranja Mecânica”


Juntamente com 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Laranja Mecânica, de Anthony Burgess é a obra literária que fecha a Tríade Distópica, são romances ambientados num futuro não muito distante das épocas em que foram escritos e que criticam a alienação, o totalitarismo e as formas de controle social. Se na parte 1 desta série vimos a obra distópica mais impactante (clique aqui para ler o artigo sobre o livro “1984”), agora nos focaremos naquela que é a mais famosa, fama em grande parte advinda da excelente adaptação cinematográfica do mestre Stanley Kubrick.

Apesar deste artigo fazer alguns paralelos e utilizar imagens da película, não é seu objetivo analisar o filme, mas o romance originalmente lançado em 1962.
Anthony Burgess não era um escritor de sucesso e nos idos de 1959 foi diagnosticado com um tumor cerebral, a partir deste ponto, com o objetivo de deixar algum dinheiro para sua esposa, ele escreveu como se não houvesse amanhã (literalmente) e em menos de um ano tinha seis obras completas, sendo que uma delas viria a se tornar um clássico, mesmo que tenha sido largamente conhecida somente dez anos depois, após o lançamento do filme de Kubrick. Felizmente, Burgess pode desfrutar do sucesso e dinheiro, pois o diagnóstico se mostrou errado e o tumor nem sequer existia.

O que seria mais bizarro que uma laranja mecânica? Segundo Burgess, trata-se de uma expressão londrina que significa estranheza, uma extravagância tão grande que subverte a natureza, afinal, o que seria tão estranho quanto uma fruta recheada por engrenagens? Estranheza que o leitor experiência logo no início do primeiro dos vinte e um capítulos, todos eles narrados em primeira pessoa pelo protagonista Alex, que emprega certas expressões em seu vocabulário, que até então eram desconhecidas por todos, trata-se do vocabulário Nadsat, que Burgess criou misturando inglês, russo e gírias londrinas. A ideia era que houvesse uma linguagem utilizada pelas gangues juvenis retratadas na obra, mas ele não poderia utilizar as gírias da época, pois além de datar o romance, entrariam em contradição com a época futura em que a história é narrada.

As edições brasileiras trazem um glossário da linguagem nadsat no final do livro, mas há uma nota informando que caso o leitor queira experimentar a estranheza que os leitores britânicos tiveram (e ainda tem, pois segundo uma pesquisa que fiz não há glossário mesmo nas atuais edições britânicas), recomenda-se que o leitor mergulhe diretamente na narrativa e descubra o mundo de Alex da maneira que o autor concebeu, algo mais ou menos assim: “Então ele agarrou com força a devotchka, que ainda estava krikikrikando num compasso quatro por quatro muito horrorshow, prendendo os rukas dela por trás e grudis muito horrorshow exibindo seus glazis rozas”.

Capas das Edições Brasileiras

Os vinte e um capítulos narrados em primeira pessoa pelo anti-herói Alex, que no filme de Kubrick se chama Alex DeLarge (numa referência a Alexandre, O Grande), são divididos em três partes distintas. A primeira delas narra a saga de ultraviolência de Alex e seus druguis, enquanto bebem moloko com vellocet e itiam pela cidade em busca de veshkas horrorshow até que Alex termina por ubivatar uma babushka e acaba indo parar na cadeia. A segunda parte mostra a rotina de Alex como um pleni até que aceita participar do Tratamento Ludovico, uma espécie de terapia por aversão em que Alex é drogado para sentir náuseas enquanto é obrigado a videar filmes de ultraviolência, bitvas e outras barbáries. O tratamento termina com Alex incapaz de cometer qualquer ato violento, mas não por opção do individuo e sim por uma imposição física, ou seja, Alex perde o livre-arbítrio. A terceira e última parte narra a reintegração de Alex à sociedade, quando seus pais não o querem mais em sua domi, ele é hostilizado por seus antigos druguis e utilizado como meio de propaganda tanto pelo governo como pela oposição.

Alex e seus druguis no Korova Milk Bar tomando moloko vellocet antes de uma noite de ultraviolência

O capítulo vinte e um do livro, que narra uma espécie de redenção do protagonista, foi originalmente omitido das edições americanas e da adaptação cinematográfica de Kubrick, deixando um final mais aberto e sombrio, quando Alex devaneia numa cena orgiástica e se declara curado do Tratamento Ludovico. Pessoalmente prefiro a versão completa, mas a visão dada por Kubrick em seu filme também é muito horrorshow.

A cena final de Kubrick, que teve de ser filmada 74 vezes até ficar perfeita

 Diferentemente de 1984 e Admirável Mundo Novo, neste romance não ficamos conhecendo todas as engrenagens de um sistema que oprime o indivíduo, mas temos uma abordagem mais pessoal daquele que foi a cobaia inicial para que se instaure um governo opressor baseado no medo. Enquanto 1984 e Admirável Mundo Novo são distopias disfarçadas de utopias, em Laranja Mecânica temos um cenário distópico de extrema violência juvenil e insegurança, que serve como artifício para que um grupo político imponha seus ideais, ou seja, é o começo de tudo, foi assim que os grandes regimes totalitários do século XX se instauraram e é assim que medidas cada vez mais restritivas e opressoras vem ganhando popularidade atualmente. O romance de Burgess tem como tema central a perda da liberdade em pról de um bem maior, porém esse suposto bem maior não passa de uma falácia, assim como no Brasil há quem defenda a volta da ditadura militar e nos EUA os membros do Tea Party clamam por medidas de segurança que invadam as liberdades individuais, o partido de ocasião em Laranja Mecânica propunha uma medida que eliminava a violência não por meio da educação e pelo provimento de oportunidades aos cidadãos, mas pela zumbificação dos indivíduos propensos à violência. Isso não é uma solução, é apenas o início de uma distopia, afinal, uma pessoa sem liberdade é algo tão bizarro quanto uma laranja mecânica.

Glossário das expressões nadsat utilizadas neste artigo:

Babushka - Velha
Bitva – Luta, Batalha
Devotchka - Garota
Domi - Casa
Drugui - Amigo
Glazi – Olho, Mamilo
Grudis - Seios
Horrorshow – Ótimo, Excelente, Legal
Krikikrikando - Gritando
Moloko - Leite
Pleni - Prisioneiro
Ruka – Mão ou Braço
Ubivatar - Matar
Ultraviolência - Estupro
Vellocet – um tipo de Droga
Veshka - Coisa
Videar – Assistir, Observar


Clique aqui e veja o glossário de expressões nadsat completo da edição brasileira.