300x250 AD TOP

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Encontrado em: , ,

Segurança e Sociedade - Paradigmas entre a Sociedade e a Justiça Penal


Com uma tradição retributiva, o processo penal habituou-se ao longo dos anos a não conviver com a vítima no processo. Esta aparece nos tribunais, hoje em dia, ora como testemunha, ora como assistente (embora raramente).

Numa relação aparentemente disfuncional, na medida em que quase não há estruturas nos tribunais para receber as vítimas de crime (apesar das diversas recomendações em contrário); e estas, “devidamente intimadas” (expressão utilizada usualmente nos autos), entram na respectiva vara criminal com a convicção de que sairão de lá tão ou quase tão vitimadas, aquando o dia do crime.

Mas sentem sobretudo que não fazem parte do processo de justiça, afinal de contas, ela (a vítima) foi diretamente a mais prejudicada com o fato ocorrido. E porque não se sentem integradas no processo de justiça? Porque, e sem me querer repetir, o processo é moldado de forma a condenar ou absolver o acusado; e nunca a reparar o dano causado à vítima. A vítima num processo penal não tem hipótese de fazer a catarse do crime. Apenas repete dolorosamente o mesmo que já relatou a várias pessoas, durante os anos subsequentes ao dia do fato, para que possa dar um pequeno contributo à produção de prova. Pequeno, porque a vítima, nas suas declarações está quase sempre “descompromissada” (termo que a remete a mera informante no processo).


Mas há um tipo de crime em que o foco está diretamente apontado à vítima! O crime de estupro.


Quando entra na sala, a mulher violentada psicológica e fisicamente por um homem (não hesito em colocar esta distribuição de género, pois corresponde à esmagadora maioria dos casos), é mirada “de alto a baixo”, com toda a atenção, por todos os intervenientes no processo, bem como todos aqueles cidadãos que conhecem a existência de tal fato ter ocorrido. Mas não o fazem por um ato de compaixão, empatia, muito menos com vontade de a proteger. O objetivo é quase sádico: verificar se esta mulher tem as características adequadas para ter sido estuprada. O que é que ela tem que provocou o ato! Se é atraente, qual o modo de vestir, se tem hábitos promíscuos, enfim; um pensamento que nasce no inconsciente, que por vezes desperta no consciente e chega em alguns casos a emergir para o exterior (quer com terceiros ou diretamente na própria vítima). O pensamento surge não por acaso: o processo, e agora repito-o declaradamente, propicia a revitimação.

O paradigma prossegue, no entanto, com o empolamento midiático inaceitável, que exige solenemente a prisão imediata de toda e qualquer pessoa acusada de crime de estupro, muito antes de este cidadão ser julgado. Reveste-se de ironia o fato de todos reconhecerem que as prisões estão lotadas e que representam uma “escola de crime” incapaz de ressocializar o indivíduo (que afinal é o objectivo da pena), mas que mal tomam conhecimento da notícia de um crime, apontam a cadeia como primeiro passo a ser seguido para castigar o infrator. Ele apodreceria então na penitenciária por uns anos, aguardando a data da sessão de julgamento, para que se prove então se afinal cometeu ou não o crime. Relembro que mesmo os acusados que confessam, têm direito a ampla defesa e ao princípio da presunção de inocência, até que o processo transite em julgado. Prisão como medida cautelar é a ultima ratio! Serviria para salvaguardar o processo, impedir a continuação da atividade criminosa, e/ou garantir a estabilidade da ordem pública. Nunca como castigo. Mas claro que os defensores do encarceramento afirmam de imediato: o estuprador irá necessariamente reincidir antes de ser julgado. Neste ponto, a intervenção do juiz é fundamental. Ele baseia-se em elementos objectivos que apontam num sentido ou no outro: e só ele tem as ferramentas isentas mais adequadas na tomada da decisão. Se não vejamos, se queremos prender todos os acusados com o receio infundado da reincidência, nem o dobro das vagas seria suficiente para suprir a demanda que chegaria às mãos dos guardas prisionais. Neste sentido, com base nos princípios e nas técnicas de avaliação do risco, o juiz deve decidir sem influência da opinião externa (nomeadamente por pressão midiática e/ou política).

Não é o processo penal que reflete a cultura de uma sociedade. Afinal, foi a sociedade que construiu o processo. O processo tem de ser adequado às vítimas e aos acusados, bem como os demais intervenientes claro está; mas primeiramente a sociedade tem de se incutir de mecanismos de humanização. E humanizar os tribunais.

A Criminologia deve intervir para a estabilização destes paradigmas, através do estudo e implementação de medidas concretas. 
No que concerne à Vitimologia, na continuação dos estudos que visam entender quais as carências que aquela vítima específica (vítimas de estupro, por exemplo) experiencia antes, durante e depois do momento do facto criminoso; bem como as suas necessidades face ao processo penal do qual deverá ser cada vez mais integrada, tanto no auxílio na descoberta da verdade material, como (e primordialmente) na reparação do dano que lhe foi causado.

Relativamente ao acusado, implementação de perícias que dotam o juiz de mais ferramentas que o auxiliam na análise de risco de reincidência da prática criminosa; na implementação de medidas penais mais eficazes no que concerne à ressocialização do indivíduo; mas sobretudo na introdução de novos programas de prevenção de criminalidade e de vitimação.

Quanto ao processo penal, o criminólogo está em posição de sugerir medidas legislativas que adequem o processo às características dos seus atores, para o tornar mais eficaz.

Isto deve ser realizado juntamente com os demais ramos profissionais que têm dado o seu contributo ao longo dos tempos (Direito, Psicologia, Sociologia, entre outros).

Certamente não serão apenas medidas de curto prazo, de imediato agrado midiático ou eleitoral, mas a médio-longo prazo constituem um investimento cujos frutos estão espalhados pelos países que mais investiram em práticas criminológicas.