Por Luiz Flávio Gomes / Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.
Meus amigos: mesmo estando alguns dias fora do Brasil, li o texto da
nova lei de trânsito, sancionada pela presidenta Dilma e publicada no
dia 12/5/14 (só vai entrar em vigor em novembro/14). Nós estamos loucos
(eu talvez por causa do fuso horário ou outra causa a ser investigada)
ou o legislador é que fez uma tremenda barbeiragem? Vejam a questão
(opinem também, porque gostaria de saber quem está redondamente
equivocado):
O legislador agregou no delito de homicídio no trânsito (CTB, art. 302: Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor) uma forma qualificada (pena maior), com a seguinte redação:
“§ 2o Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:” “Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” (NR)”
Como se vê,
no art. 302, quando a morte resulta (1) de direção embriagada ou (2) de
participação em “racha” ou (3) de manobra arriscada, a pena será de
reclusão (não de detenção), de dois a quatro anos (muda de detenção para
reclusão, o que significa pouca diferença na prática).
Pois bem:
no art. 308 o legislador agravou todas as penas previstas para quem
participa de “racha”. Foram contempladas três situações: (1) participa
do “racha”, gera risco de acidente, mas não lesa ninguém (pena de 6
meses a 3 anos + sanções acessórias); (2) participa do “racha” e gera
lesão corporal grave (pena de 3 a 6 anos mais sanções acessórias); (3)
participa do “racha” e gera morte (pena de 5 a 10 anos mais sanções
acessórias). Vejamos o novo texto legal:
“Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:
Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1o Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.
§ 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.” (NR)
O problema: aqui no art. 308 o resultado morte
provocado culposamente aparece como qualificadora do delito de
participação em “racha”. Já no art. 302 (homicídio culposo), é a
participação em “racha” que o torna qualificado (mais grave). No delito
de participação em “racha”, é a morte que o qualifica. No delito de
homicídio, é a participação no racha que o qualifica. Mas tudo isso é a
mesma coisa! O mesmo fato foi descrito duas vezes. Na primeira situação
(art. 302), a descrição legal foi de trás para frente (morte em virtude
do “racha”); na segunda (art. 308), da frente para trás (“racha” e
depois a morte). Para não haver nenhuma dúvida (talvez essa tenha sido a
preocupação do emérito legislador), descreveu-se o mesmo fato duas
vezes. Seria uma mera excrescência legis (o que já é bastante reprovável), se não fosse o seguinte detalhe:
No art. 302 (homicídio culposo em razão de “racha”) a pena é de reclusão de dois a quatro anos; no art. 308 (“racha com resultado morte decorrente de culpa”) a pena é de cinco a dez anos de reclusão! Mesmo fato, com penas diferentes (juridicamente falando, sempre se aplica a norma mais favorável ao réu, ou seja, deve incidir a pena mais branda – in dubio pro libertate).
O
legislador, quando redigia o art. 302, era um (talvez fosse o período
da manhã); quando chegou na redação do art. 308, passou a ser outro
(talvez já fosse o período da tarde). O fato é o mesmo, mas as
valorações punitivas são completamente diferentes. E agora? O legislador
derrapou ou nós é que estamos loucos? (gostaria de ouvir a opinião de
vocês). Se a loucura for minha, nada poderá ser feito (a não ser me
internar). Se a barbeiragem (e derrapagem) foi do legislador, vamos
correr para corrigir o erro. O Brasil não merece mais uma polêmica
legislativa, geradora de enorme insegurança.